Apreciar uma boa refeição é uma das atividades da vida cotidiana que mais me agradam. Minha relação com a comida vai muito além da necessidade nutricional que meu corpo precisa para se manter ativo. Comer, para mim, envolve uma constante construção de memórias.
Sou daquelas pessoas que amam dar comida como presente (embora ache que deveria fazer isso com mais frequência). O prazer de cozinhar foi descoberto quando eu precisei, de fato, ser a responsável pela minha própria alimentação: a partir do momento em que fui morar sozinha. Essa atividade, apesar de extremamente cansativa, me traz uma sensação de prazer indescritível que é comer uma refeição que eu mesma preparei, por mais simples que ela seja.
Tenho muitas memórias da infância relacionadas à comida que envolvem momentos como os Natais caóticos na casa da minha avó paterna, o pavê que minha mãe sempre fazia em ocasiões especiais (ou quando a gente pedia mesmo) e o pão quentinho com patê que comia na casa da minha avó materna depois da escola, enquanto eu e meu irmãos esperávamos meus pais buscarem a gente.
“Em um intervalo de cinco anos, perdi minha mãe e minha tia para o câncer. Então, quando vou ao H Mart, não estou apenas em busca de frutos do mar e três ramos de cebolinha por um dólar; estou à procura de memórias. Estou colhendo evidências de que a metade coreana de minha identidade não morreu quando elas morreram.”
(Michelle Zauner em “Aos prantos no mercado”)
Quando saí da casa dos meus pais no Rio e vim para Salvador, minha mãe me deu um livreto com receitas de liquidificador. E, sempre que voltava, ela e meu pai se preocupavam em comprar ou fazer algo de que eu gostasse de comer. Também guardo um e-mail que ela me mandou em outubro de 2012, cerca de um mês depois que me mudei, me passando mais algumas receitas simples, entre elas a do pavê que ela sempre fazia. Eu já fiz esse pavê umas duas vezes nesses últimos 11 anos e, assim que comi, fui transportada para o Rio; quase pude sentir o prazer de raspar a panela com os restos do creme ou a ansiedade de esperar a sobremesa gelar para poder comer (e a frustração de ela acabar rápido demais).
Isso é comida para mim: afeto. Cozinhar para outra pessoa ou comer uma refeição especial é um ato de amor e conexão. Muitas vezes, é a forma, sem palavras, de demonstrar que se importa com alguém.
Ainda não fiz essa receita desde que minha mãe morreu em 2021, mas esse é um dos pedacinhos especiais que guardo dela, assim como assistirmos juntas ao programa de Rita Lobo (minha musa inspiradora em termos de cozinhar receitas fáceis e gostosas) quando ia visitar a família no Rio.
Cansaço e falta de tempo
Já ficou mais do que claro que eu adoro cozinhar. Mas, não vou mentir: fazer comida cansa — e muito! Não é à toa que tenta-se vender soluções fáceis e rápidas para nos deixar cada vez menos tempo na cozinha. Parece uma coisa boa — afinal, falta de tempo é uma constante na vida de todo mundo. Mas, parando para analisar melhor, há grandes perdas: nutricionais, culturais e emocionais.
Diminuímos o tempo das nossas refeições para sobrar mais horas para o trabalho (porque para o lazer nunca sobra, por mais que tentem vender essa ideia). E aí nos reunimos cada vez menos com quem amamos, conversamos só o trivial ou levamos as telas para a hora de comer. Transformamos nossas refeições em um lanche rápido ali na mesa do trabalho mesmo. Como disse Jacques Attali em “A epopeia da comida”, o fim da refeição à mesa é o melhor aliado da sociedade de consumo.
“O trabalho tomou tanto espaço na vida de todos que se tornou difícil imaginar se dedicar a qualquer coisa que não seja a eficiência no que se faz. Também é difícil pressupor que exista algum prazer que não esteja ligado com o próprio fazer - mesmo quando o objeto é uma atividade fisiológica que naturalmente nos faz sentir prazer. Alguns se defendem dizendo que não se importam com comida, e suspeito, eles encaram a comida como mais uma tarefa que precisa ser feita, já que ainda precisam daqueles nutrientes. O que importa é se manter funcionando pra dar conta de ganhar a vida.”
(Carla Soares na newsletter Outra Cozinha)
Tais mudanças dizem muito sobre como nos comportamos enquanto sociedade. A alimentação está, desde sempre, muito ligada à nossa evolução enquanto espécie. A história e a cultura de um determinado povo e de uma determinada época podem ser observadas por meio da forma como lidam com a comida.
“O alimento é, desde tempos remotos, muito mais do que uma necessidade vital. É também uma fonte de prazer, o fundamento da linguagem, uma dimensão social do erotismo, uma atividade econômica importante, um ambiente de trocas, um elemento-chave da organização das sociedades. Ele estabelece nossas relações com outras pessoas, com a natureza e com os animais. É a mais perfeita medida de estranheza de nossa condição e da natureza das relações entre os sexos.”
(Jacques Attali em “A epopeia da comida”)
O que nosso comportamento atual em relação à comida nos diz sobre quem somos? A meu ver, a nossa realidade capitalista, em que tempo é dinheiro, tenta nos convencer de que não precisamos gastar muito tempo cozinhando e comendo. E, assim, elos são perdidos e laços são afrouxados.
Por muito tempo (e ainda hoje, sejamos sinceros), a cozinha era vista como “lugar de mulher” e, logo, inferior. Aí, fomos conquistando direitos, mais espaços, saímos do ambiente doméstico e ocupamos o mercado de trabalho. E a comida? Bem, continuou sendo assunto da mulher, que acumulava cada vez mais funções, dentro e fora de casa.
Então, eu entendo o apelo de sair da cozinha e renegar esse espaço como parte essencial da nossa vida. Mas acho que é possível repensar o ato de cozinhar envolvendo todas as pessoas que habitam uma casa. Refletir sobre o que a alimentação representa na nossa existência.
Falar sobre comida, hoje em dia, é reorganizar todo um pensamento sobre produtividade e saúde. Dá trabalho, incomoda, mas acho extremamente necessário. Não conhecemos mais de onde vêm os alimentos que compramos, qual a história de uma receita ou por que um ingrediente é tão usado em determinada região. Quanto mais nos afastamos da mesa de refeição, mais desconhecemos quem somos e de onde viemos. Desse jeito, para onde estamos caminhando? Qual o futuro da nossa alimentação?
“Adoro cozinhar, mas basta uma semana mais desgastante no trabalho para que eu contemple seriamente a ideia de viver de Soylent por alguns dias na semana. Adoro fazer meu almoço todos os dias, mas me pergunto se veria alguma poesia nisso se precisasse fazer isso para alguém, todos os dias, além de mim. Preciso me lembrar constantemente que a solução não está em descobrir como se desdobrar em mil para pegar todos os pratos, mas em pensar em jeitos diferentes de viver para que esses pratos se acomodem.”
(Anna Vitória Rocha na newsletter No recreio)
Não quero que ter o controle sobre o que como seja apenas uma obrigação, mas uma escolha consciente, quase um ato de rebeldia. Tem dias que dá certo e tem dias que não. O que não aceito é que a conexão provocada pela comida seja devorada por promessas vazias de facilidade.
A quem ficou com vontade de experimentar o pavê de minha mãe, vou deixar aqui a receita que ela me mandou.

Ingredientes:
- Para o creme:
1 lata de leite condensado
2 gemas
1/2 lata de leite
- Para a cobertura:
2 claras
1 caixinha de creme de leite
- Para montar:
1 caixa de biscoito de champanhe
Leite (suficiente pra molhar os biscoitos)
Modo de preparo:
– Creme: leve todos os ingredientes ao fogo, mexendo sempre até obter um creme liso.
– Cobertura: bater as claras em neve e depois misturar delicadamente o creme de leite.
– Montagem: Numa travessa, alternar uma camada do biscoito molhado no leite e do creme em temperatura ambiente, até acabar. Por último, colocar a cobertura. Levar à geladeira.
Referências e inspirações
Muitos ingredientes literários serviram de inspiração para esse texto. Aqui vão eles:
Livros
– A epopeia da comida (Jacques Attali, tradução de Mauro Pinheiro)
– Toda comida tem uma história (Joana Monteleone)
– Aos prantos no mercado (Michelle Zauner, tradução de Ana Ban)
Outros textos
– Viver é louça, de
, publicado na newsletter No recreio.– Um copo, uma transgressão, de
, publicado na newsletter Queria ser grande, mas desisti.– Qual o segredo de Soylent Green?, de
, publicado na newsletter Outra Cozinha.A newsletter Devaneios Criativos foi criada e escrita por mim, Carol Vidal, e agora conta com a colaboração de Rita Zerbinatti, professora de arte e apaixonada por livros como eu, na curadoria de imagens. Segue o texto que ela preparou sobre as obras escolhidas para esta edição:
Mamma Anderson é uma artista contemporânea sueca que impacta nosso mundo visual com pinturas que nos desafiam a olhar novamente para o cotidiano, para cenas corriqueiras, que aqui são completamente transformadas, mostrando que a vida tem uma delicadeza única se soubermos olhar. Uma mesa depois da refeição, uma cena tão comum, chata, monótona — como o título nos aponta — e, ainda assim, essa pintura me prende tanto. O que pode ser interessante em uma mesa depois da janta? As memórias, claro. Essa pintura me prende porque me vejo novamente com a minha família ao redor da mesa, os aromas das comidas deliciosas da minha mãe, as nossas conversas, celebrações e, claro, alguns momentos difíceis também. Tudo volta, e tudo isso me construiu para ser quem sou. É parte crucial de mim.
que delícia de reflexão! eu também tenho um caderninho de receitas de liquidificador, presente da mamãe. cozinho alguma receita desse caderno e me sinto de volta ao lar :)
ai, adorei aparecer na aba das referências e inspirações de uma edição tão gostosa de ler <3