Pode parecer meio óbvio falar da importância das palavras quando se é uma pessoa que as utiliza para contar histórias. Pensar nelas é parte essencial do trabalho enquanto escritora, seja de ficção, seja para essa newsletter, por exemplo. Gosto de escolher cada palavra com cuidado para ajudar, não só na compreensão, mas no ritmo do texto (um beijo, Dicionário Analógico!); quero ter certeza de que meu objetivo vai ser alcançado, embora saiba que esse exercício de comunicação dependa também de quem está do outro lado lendo. Mas queria falar aqui das palavras mais do que como um meio para comunicar uma mensagem: esse amontoado de letras carrega em si significados muito maiores. Palavras têm poder.
Desde que nascemos, nos é atribuída uma palavra que vai nos definir. Há quem acredite que o nome guia quem aquela pessoa será, o que torna a escolha ainda mais significativa. Junto a isso, há o sobrenome, o “nome da família”, que pode lhe abrir o mundo ou fechar portas. Raros ou comuns, importantes ou desconhecidos, nossos nomes são o primeiro contato com o outro, uma sentença que nos acompanha ao longo da vida.
Em “O guardião de nomes” (Leonardo Garzaro), o protagonista, aquele responsável por nomear as pessoas nascidas onde ele mora, é um homem sem nome. Sétimo filho do homem mais importante da cidade, não teve um nome atribuído a si porque o pai não conseguia escolher o ideal para representá-lo. E, por uma série de fatores que culminaram numa tragédia, foi rejeitado pela família e nunca teve atribuído a si um nome. Ele se tornou um pária. Ele era um silêncio.
O que é o ato de nomear, então, senão uma atribuição de valor? Há os que têm nome e há os demais.
“Creio que (fonte: minha imaginação) os nomes das coisas podem ter sido as primeiras palavras desenvolvidas por nossos ancestrais. (...) E o nome escolhido muitas vezes diz mais sobre quem o escolheu do que sobre o que o ostentará.”
(Thiago Ambrósio Lage na newsletter Mercúrio em Peixes)
Ainda na seara das relações, para além de nome e sobrenome, o seio íntimo pode guardar vocabulário próprio, um léxico que só é capaz de entender quem está por dentro da dinâmica do grupo de pessoas em questão. Vocês já devem ter passado por isso: chegar em um lugar em que todas as pessoas se conhecem e ter dificuldade de acompanhar as conversas, as piadas internas, toda uma gama de palavras construída ao longo de anos de convivência e intimidade. Pode ser assustador não dominar aquele vocabulário. As palavras aproximam e afastam.
Eu sou uma pessoa que “pego” o sotaque muito fácil. Em pouco mais de 11 anos morando em Salvador, perdi bastante do sotaque carioca e adquiri muito do jeito de falar soteropolitano. Muitas vezes, me sinto num “não-lugar”, como se não pertencesse mais ao lugar de onde vim, mas, ao mesmo tempo, não tivesse me apropriado de forma completa do lugar que escolhi para viver. Baiana demais para ser carioca. Carioca demais para ser baiana.
Porém, pensando nesse âmbito das palavras, me sinto mais rica. Meu léxico é uma mistura única que só eu poderia ter. Um pouco de cada lugar, muito de novas experiências e misturas. Construí um lugar próprio para habitar com minhas palavras ao mesmo tempo de vogais abertas, a letra “s” chiada no final e um acréscimo de “a” no meio delas. “Oxe, garoata, tem ixpaço pra tudo!”
As palavras que são nossas e as que dividimos com pessoas queridas são uma forma de identificação mútua, um farol a nos guiar pelo caminho tortuoso do que é viver e se relacionar. Um conjunto de palavras pode guardar uma vida inteira.
“Uma dessas frases ou palavras faria com que nós, irmãos, reconhecêssemos uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas.”
(Léxico familiar – Natalia Ginzburg)
Raimundo, protagonista de “A palavra que resta” (Stênio Gardel), nunca aprendeu a ler e guarda há mais de 50 anos uma carta recebida de um antigo amor da adolescência. Não sabe o que aquelas palavras significam e nunca deixou que ninguém as lesse para ele, com medo de que o conteúdo fosse comprometedor — ser um homem gay numa cidade do interior o levou a passar por diversos tipos de violência.
Guardar aquela carta intacta e decidir que havia chegado o momento de lê-la é uma forma de Raimundo se apropriar da própria vida. Ele quer entender as palavras que o constituem. A jornada dele é cheia de silêncios e palavras proibidas. Aprender a decifrá-las é um exercício de libertação. Dominando as palavras, ele pode decidir seu destino sem que seja ditado por mais ninguém.
Subjugação x Resistência
Como disse no início do texto, palavras têm poder, e quem detém o poder na sociedade é capaz de ditar quais palavras importam e como devem ser entendidas. Pensemos na confecção de um dicionário: por mais que tente abarcar a totalidade de palavras e significados, é impossível contemplar toda a diversidade. É preciso, portanto, fazer escolhas. E o que pesa nessas escolhas, se não a posição de prestígio que os lexicógrafos (homens, em sua grande maioria) ocupam na sociedade?
Para ser contemplado em um dicionário, o sentido de uma palavra precisa ter sido usado em uma publicação “oficial”, seja livros ou artigos de jornal, por exemplo. Dessa forma, é claro que uma expressão usada por uma mulher pobre jamais será considerada, por mais que seu uso seja muito difundido na população.
O quanto não se perde nessa “redução”? Opressões não deixam de acontecer porque determinado significado não foi considerado em um dicionário. Assim como um léxico próprio de grupos minoritários não vai deixar de existir, por mais que não seja considerado “oficial”. Os dicionários trazem muita riqueza de aprendizados, mas os significados não se encerram naquele conjunto limitado de páginas. Muitas são as palavras perdidas por aí.
— Mas qual o sentido disso? — disse ela, tirando uma ficha do baú e olhando. — Metade das pessoas que dizem essas palavras jamais conseguiria lê-las.
— Talvez — concordei, colocando o baú em cima da cama. — Mas suas palavras são importantes.
(Dicionário das palavras perdidas – Pip Williams)
Os detentores do poder também podem, inclusive, subjugar grupos minoritários ao atribuir-lhes determinadas palavras em tom pejorativo, ou até mesmo achar que são capazes de entendê-los ou defini-los. Tira-se a autonomia de autodefinição desses grupos.
E assim surgem os movimentos de resistência. No campo da ficção, tem a láadan, língua criada pelas mulheres em “Língua nativa” (Suzette Hadel Elgin). Ambientado em um futuro em que são consideradas úteis apenas as mulheres que podem servir aos homens em cargos específicos e a eles subordinados — como as linguistas que servem como tradutoras para a comunicação entre a humanidade e seres de outros planetas — uma revolução silenciosa toma corpo entre essas mulheres largadas para morrer quando não têm mais utilidade. Toda a ideia desse novo idioma é, além de um ato revolucionário, uma forma de exprimir na linguagem a experiência do que é ser uma mulher naquele contexto. São palavras novas para ideias que os homens, detentores do poder, são incapazes de entender, ou até mesmo considerar a existência.
Quando uma ideia não tem nome, é muito mais fácil negar sua existência — e não tomar ação alguma para mudá-la.
(Língua nativa - Suzette Hadel Elgin)
Saindo da ficção e indo para a realidade, um exemplo de movimento de resistência através das palavras está no pajubá. Esse é um dialeto criado por integrantes da comunidade LGBT (especialmente trans e travestis) como forma de proteção durante a ditadura militar e que, na sua criação, bebe muito do léxico das religiões de matrizes africanas, onde essas pessoas se sentiam acolhidas.
Hoje, muitas palavras do pajubá se tornaram populares, como, por exemplo, “gongar”, mas não podemos perder de vista o contexto de criação do dialeto e a importância dele como uma tecnologia linguística na constituição de identidade e resistência. O pajubá cria fissuras nas relações de poder da sociedade.
No movimento de desestabilização da norma e valorização da produção subalterna, o pajubá descoloniza a língua, de forma consciente ou até mesmo inconscientemente, ao acionar uma nova ética do dizer, funcionando como uma arma linguística para dar novos sentidos às palavras e aos sujeitos que, outrora, foram feridos no processo de violência linguística e, portanto, social.
(Ailton Gomes da Silva Júnior, em artigo sobre o tema)
Na luta para ter suas identidades reconhecidas, grupos marginalizados usam das palavras para marcar seu lugar no mundo. Ao se apropriarem de uma nova forma de comunicação, tomam para si o direito de contar suas próprias histórias.
E a prova de que o pajubá é revolucionário é que, em 2018, caiu uma questão no ENEM sobre o reconhecimento dele como dialeto. Não preciso nem dizer a horda de conservadorismo que saiu das catacumbas para criticar a questão, né?
Como eu disse, palavras têm poder, e a nossa luta é também no discurso.
Com esse texto, tentei fazer o exercício de “sair do automático” e olhar as palavras por uma nova dimensão e reconhecer nelas uma nova força. Entender esse poder nos dá a chance de usar as palavras com mais sabedoria e propósito, e, por meio delas, dar voz a quem não costuma ter. Palavras são mais do que letras escritas num papel.
Referências e inspirações
Li muitas palavras importantes para chegar ao resultado deste texto. Recomendo todas elas!
Livros
A palavra que resta (Stenio Gardel)
Léxico familiar (Natalia Ginzburg, tradução de Homero Freitas de Andrade)
Dicionários das palavras perdidas (Pip Williams, tradução de Lavínia Fávero)
Língua nativa (Suzette Hadel Elgin, tradução de Jana Bianchi)
O guardião de nomes (Leonardo Garzaro)
Outros textos
– Gongando a norma e aquendando o pajubá: conexões teóricas entre língua e identidade a partir do dialeto LGBT (Ailton Gomes da Silva Júnior)
– O pajubá como tecnologia linguística na constituição de identidades e resistências de travestis (João Gomes Junior)
– Antropoceno, cthlhuceno, platationoceno, plutonoceno, *.ceno -
A newsletter Devaneios Criativos foi criada e escrita por mim, Carol Vidal, e agora conta com a colaboração de Rita Zerbinatti, professora de arte e apaixonada por livros como eu, na curadoria de imagens. Segue o texto que ela preparou sobre a obra escolhida para esta edição:
Nessa série da Mira Schendel, existe o vazio e existem as letras. Essas letras jogadas não compõem nenhuma palavra, são postas apenas como figuras espalhadas no papel, com uma profundidade e uma transparência que seduz nosso olhar. Será nosso dever, como leitores e observadores, juntar essas letras e compor nossas próprias palavras? No entanto, existem letras tão pequenas que não podemos enxergar. Como compor algo com aquilo que não conseguimos enxergar muito bem?
Os artistas fazem isso o tempo todo.
Essa imagem também pode nos sugerir algo interessante: há palavras demais, há letras demais — que tal diminuir, deixá-las ser, estar, soltas no tempo? Existe um silêncio muito profundo e intocável aqui. Existe um vazio muito profundo e intocável aqui. Imagine uma letra solta no tempo e verá Mira Schendel. Ela conseguiu captar essa soltura, esse desprendimento, esse não pertencer, esse silêncio e esse vazio. E, mesmo diante de tanto silêncio, é muito forte o desejo em nós de simplesmente juntar as letras, colocar sentido nelas, organizá-las. Dar nome.
Mira foi uma artista que nasceu na Suíça e veio parar aqui no Brasil em 1942. Uma mulher extremamente culta, se aproximou da filosofia, teosofia, poesia. Mira, antes de ser artista visual, era poeta. Suas obras causam sentimentos peculiares e profundos, colocando o observador em um lugar de incômodo e, ao mesmo tempo, de conforto. Aquele sentimento estranhamente familiar, um pouco assustador e, no entanto, muito belo, muito silencioso, que se movimenta lentamente e você simplesmente não consegue parar de acompanhar. Ao meu ver, em suas obras, a Mira Schendel consegue traduzir a delicadeza do mundo, uma delicadeza que imagino existir atrás das nuvens.
Veja aqui mais sobre a artista.
para mim, a parte mais divertida de escrever é escolher e combinar as palavras, principalmente quando consigo atingir um significado ou uma imagem original para palavras comumente usadas em outros contextos.
É interessante como você colocou tão bem as diversas possibilidades que as palavras podem trazer. Leria mais páginas disso.