Faz pouco mais de 11 anos que saí da casa dos meus pais e fui morar sozinha. Uma nova casa, uma nova cidade, um novo Estado. E, durante esse tempo, sempre que volto para visitar, se apossa de mim uma sensação estranha: esse lugar, onde morei boa parte da minha vida, ainda poderia ser considerado minha casa ou deixou de ser a partir do momento em que saí?
Não é que eu não fosse bem-vinda ali, de forma alguma. É mais uma coisa interna mesmo. Eu me adaptei tão bem à vida em Salvador que retornar para dentro daquelas paredes que me abrigaram por mais de 20 anos (o lugar onde morei por mais tempo até agora) parecia me transportar para uma outra vida, a qual, muitas vezes, eu não reconhecia mais. Ao mesmo tempo em que o Rio de Janeiro era minha referência de familiaridade, eu mudei tanto desde que saí de lá, que tenho cada vez mais dificuldades de reconhecer aquele lugar como meu — assim, no presente.
Sempre fui uma pessoa em busca do “meu lugar no mundo”. Casa é onde me sinto parte — e isso não necessariamente significa um lugar físico. A escrita, por exemplo, é uma casa onde me sinto muito à vontade para habitar, assim como a música o é para o protagonista do filme “Inside Llewyn Davis” — inclusive, porque ele nem tem um lugar fixo para morar. Ele está em busca do seu espaço, de provar o valor de sua arte, mesmo que isso signifique não ter a segurança de um teto sob sua cabeça.
Ficar, ir embora, voltar, não ter para onde ir... “Casa” é um tema que levanta muitas discussões. E, por gostar tanto dele, resolvi mergulhar em algumas obras que trazem à tona essas possibilidades.
Raízes fincadas e arrancadas
Ao falar de casa, é quase automática a referência à família. O local onde morou na infância, passou as férias, casa de vó, brincadeira com os primos... O doce sabor da inocência vem com a evocação das raízes. Muitas propriedades, especialmente as mais antigas, estão impregnadas de gerações de lembranças — boas ou não. Às vezes, já encontramos essa estrutura pronta e não questionamos onde aquela história (a nossa história) começou.
“Queria estar enraizada tão profundamente na terra que nada, nenhum ser humano, nenhuma força da natureza, exceto um ato celestial, pudesse arrancá-la.”
(A herança de Orquídea Divina – Zoraia Córdova)
Orquídea Divina, personagem que dá nome ao livro escrito por Zoraia Córdova, precisou construir essas raízes com suas próprias mãos. Fugindo de um passado de sofrimento, perambulou pelo mundo até encontrar onde se estabelecer. Queria deixar para seus descendentes um lugar que eles pudessem reconhecer como deles. Deixa de herança uma casa e a magia — e muitos segredos.
Ao longo da leitura, vamos entendendo quem foi essa mulher e o porquê toda a sua família a foi abandonando ao longo do tempo, o que não a impediu de se manter firme na casa que construiu para viver seus dias. E, apesar da relutância, seus familiares vão entender que herança não é algo que se escolhe — ela está lá, para o bem ou para o mal, restando a cada um decidir o que fazer com ela.
Família, esse nosso primeiro núcleo social, pode ser a ruína de uns e o sonho de outros. Olivia Prior, protagonista de “Mansão Gallant”, de V. E. Schwab, é uma menina órfã que sonha em ter uma família. Desde que perdeu a mãe e foi deixada, ainda criança, em uma casa de acolhimento que representa tudo menos um lar para ela, sonha com o dia em que descobrirá que tem uma família lá fora procurando por ela. Esse dia chega, mas traz com ele uma sombra sangrenta.
Mesmo alertada dos riscos de ficar na Mansão Gallant, Olivia entende que ali, a casa onde sua mãe nasceu, é o seu lugar, não importando o que venha junto no pacote. À primeira vista, pode parecer ingenuidade a menina aceitar se sujeitar às regras estranhas daquela casa ou conviver com um primo que deseja tudo menos a presença dela. Mas, ao encontrar ali vestígios de sua ancestralidade, ela entende que casa e família não necessariamente significam uma vida idílica com que sempre sonhou. Ainda assim, ela aceita a herança que lhe é de direito, com todos os percalços e segredos incluídos. Olivia pertence àquela casa e sente que é seu dever e seu direito envolver-se nos mistérios.
Segredo, inclusive, parece ser o tom de muitas histórias que envolvem casa, família e heranças. Toda casa tem seus fantasmas (reais ou metafóricos). Uma casa pode ser assombrada não só por aqueles que já morreram e não conseguem se desvencilhar do local; segredos enterrados podem ser piores do que assombração. A constatação de que não se conhece tão bem aquela pessoa que divide o mesmo teto que você pode ser tão ou mais assustador que uma aparição sobrenatural.
Uma casa é um recipiente de histórias. O quanto paredes, móveis e utensílios podem contar sobre alguém?
Voltar para ir em frente
A ficção (e a realidade) nos mostram que não só fantasmas ficam presos a uma casa por ter “assuntos mal resolvidos”. “A casa holandesa”, de Ann Patchett, nos traz um exemplo claro disso: os irmãos Danny e Maeve cresceram na casa que dá nome à obra, mas, por uma série de circunstâncias, acabam sendo expulsos da propriedade. Sem conseguirem se desvencilhar do passado, o programa preferido deles é estacionar o carro na frente da casa e observar. Revivem ali momentos marcantes que tiveram como protagonista a casa holandesa.
“Eu sentia a casa inteira sentada em cima de mim como uma concha que eu teria de carregar pelo resto da vida.”
(A casa holandesa – Ann Patchett)
Ao terem destruído o direito de habitar a propriedade, os irmãos estão presos a um passado de mágoas que não conseguem deixar para trás e uma promessa de futuro que não se concretizou. Eles seguem a vida, mas há um fio invisível que faz com que não consigam ficar muito tempo longe da casa. É quase um magnetismo que os atrai para aquela esquina com o objetivo de observar a mansão que juravam que seria o seu lar para sempre.
Transportando esse pensamento para a área criativa, entendo o ato de escrever como uma oportunidade de “voltar para casa”, que não precisa, necessariamente, ser um lugar físico. A criação artística está impregnada das vivências de quem as produz, mesmo que não se fale de si nas obras. Precisamos, muitas vezes, olhar para dentro e entendermos quem somos e de onde viemos para aí nos apropriarmos do que queremos criar enquanto arte.
E se esse lugar interno é conflituoso, isso se refletirá no que entregamos ao mundo — tem quem ache que essa é a essência da arte; eu prefiro trilhar um caminho de pacificação. Podemos ir longe, mas também necessitamos saber como voltar para nós mesmos. Acredito que esse seja um trabalho para a vida inteira: ir mais profundamente a cada obra criada e entender o que se quer construir com a arte, que fundações terá essa casa com terreno sempre em transformação e com novas possibilidades de paredes a serem erguidas.
Encontrar nosso lugar no mundo e voltar para casa: eis a essência do que é fazer arte.
Referências e inspirações
Muitas casas (com paredes ou metafóricas) serviram de inspiração para esse texto. Aqui vão elas:
Livros
– A herança de Orquídea Divina (Zoraia Córdova, tradução de Mel Lopes)
– A casa holandesa (Ann Patchett, tradução de Alessandra Esteche)
– A outra volta do parafuso (Henry James, tradução de Paulo Henriques Britto)
– Mansão Gallant (V. E. Schwab, tradução de Paula DiCarvalho)
– O que sabem as paredes (Diego Betioli)
Outros materiais
– Texto “Voltar pra casa” , de
, publicado na newsletter Uma palavra– Filme “Inside Llewyn Davis” (direção dos Irmãos Cohen), cuja referência vi num texto de
na newsletter Andanças.A newsletter Devaneios Criativos foi criada e escrita por mim, Carol Vidal, e agora conta com a colaboração de Rita Zerbinatti, professora de arte e apaixonada por livros como eu, na curadoria de imagens. Segue o texto que ela preparou sobre as obras escolhidas para esta edição:
Larissa de Souza é uma artista contemporânea brasileira que, através de sua obra, nos apresenta um cotidiano rico em saberes ancestrais. São obras que buscam resgatar memórias e vivências que atingem a todas, especialmente nós, mulheres negras. Pensar sobre o lar, para muitas de nós, pode trazer uma sensação de vazio, mas que de alguma forma muito poética e sensível, a Larissa consegue curar. Por isso a importância de sua obra: ela ocupa espaços, e não somente espaços geográficos, mas espaços internos dentro de corpos que tiveram suas histórias e suas culturas destruídas. Quando penso em lar, penso também nessas pinturas.
tenho essa sensação estranha de que você falou toda vez que volta à casa dos meus pais, onde morei boa parte da minha vida também. curioso como um lugar que era tão meu passou a ser um tanto alheio. lembrei-me também de uma frase do livro "cem anos de solidão": "a gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele".