Eu não sei se esse é um traço da minha personalidade que é conhecido por muita gente, mas eu adoro correr. E digo que essa talvez seja uma informação surpreendente, já que uma vez uma pessoa me contou que a corrida não era uma atividade que ela relacionaria a mim. Mas, sim, ela faz parte da minha vida.
De fato, nunca fui uma criança esportiva, mas tem algo na corrida que me atrai. E o principal fator é que é uma atividade para ser feita ao ar livre e sem necessidade de muitos equipamentos. Basicamente, é colocar um tênis e sair por aí (claro que um acompanhamento profissional é importante para evitar lesões e entender os limites do corpo, mas vocês entenderam). Eu sempre gostei muito de fazer as coisas andando e sempre morei em lugares que proporcionavam isso. Então, gostar de corrida me parece fazer sentido.
Apesar desse apreço, foi só recentemente que comecei a me dedicar à atividade com mais afinco. Um dos grandes motivos é que, por ter escoliose, exercícios de impacto sempre me incomodavam. E foi para mim uma alegria imensa conseguir usar os exercícios de fortalecimento para me permitirem correr com conforto. Lá no meu Instagram tem uma foto de uma prova de 5km que participei em agosto do ano passado. Uma realização e tanto!
Quando saio para correr, consigo desligar a mente, que está exposta a tantos estímulos o tempo todo. É revitalizante ter esse momento de entrar em outra sintonia e me focar somente no próximo passo que tenho que dar, no ritmo dos meus batimentos cardíacos e da minha respiração. Termino uma corrida cansada e renovada na mesma medida.
Parece que, ao não pensar em nada, abro espaço para observar o que me cerca com um olhar descansado. E isso é essencial para o trabalho de escrita.
Escrever, em certa medida, é ter a capacidade de observação do mundo e das pessoas e enxergar ali possibilidades narrativas. Uma fala, uma placa, alguém que passa por mim: tudo pode virar material para criar minhas histórias. E, para isso, ajuda muito estar na rua.
Além disso, a escrita e a corrida compartilham uma característica muito importante: para executar melhor essas atividades, é preciso repetição. Sou uma pessoa mais procrastinadora do que gostaria de admitir, então, construir hábitos — e, o principal, mantê-los — é um grande desafio para mim. Fico na corda bamba entre não me cobrar demais e não ceder de vez à preguiça. É uma balança difícil de manter equilibrada, e claro que isso impacta no meu desempenho.
E quando falo em desempenho, nem estou falando em números, mas na manutenção de uma rotina constante de realização de atividades que gosto tanto, como é correr e contar histórias. Sinto que poderia ter evoluído muito mais em ambas as atividades se eu conseguisse encaixá-las com mais frequência na minha rotina. É sempre meio frustrante, por exemplo, ficar um tempo sem correr e, no momento em que volto, sentir que minha capacidade retrocedeu e preciso dar um passo para trás e construir novamente o caminho.
Em relação à escrita é a mesma coisa. Não tem jeito: é ficar um tempo sem escrever e me sinto meio travada, como se não soubesse o que estou fazendo. Na corrida e na escrita, sem a repetição, perco a fluência de movimento e a capacidade de resistência. Mas continuo tentando, na esperança de não largar mão da disciplina. Essa nova fase da newsletter, inclusive, é um esforço nesse sentido.
Essa coisa de juntar corrida e escrita me remete àquela ideia de que, para contar boas histórias, a pessoa precisa estar em constante sofrimento, uma alma soturna sempre mergulhada nos mais profundos abismos. Não posso falar por meus colegas escritores, mas, no meu caso, se minha cabeça não estiver boa, não há forma de eu conseguir sentar e escrever. Considero parte do processo criativo manter meu corpo e minha mente em pleno funcionamento.
E sei que não estou sozinha nessa. Haruki Murakami, escritor japonês que já publicou livros super consagrados, é maratonista. Enquanto lia seu ótimo livro de memórias/ensaios “Do que eu falo quando falo de corrida”, só pensava em como adoraria sentar um dia com ele e conversar sobre esse gosto pela corrida que temos em comum. É claro que não chego nem perto das distâncias que ele já percorreu (o homem participa de uma prova de maratona por ano há mais de duas décadas e já correu até a ultramaratona, que são CEM quilômetros!), mas me identifiquei muito com as relações que ele faz entre a atividade de maratonista e a de escritor — atividades essas que chegaram praticamente juntas na vida dele.
Achei muito interessante ele contar que, a partir do momento que decidiu investir na carreira de romancista, função que o manteria longos períodos dentro de casa, ele precisaria de uma atividade que o fizesse sair e o ajudasse a se manter saudável. E assim veio a corrida. Ler os relatos de Murakami me serviu de exemplo de construção de rotina de longa duração, um compromisso inadiável com a literatura e com o esporte. Tudo isso respeitando os limites individuais. A ideia é ser saudável e não adoecer. Recomendo a leitura para todos os escritores-corredores que estiverem me lendo.
A maior parte do que sei sobre escrever, aprendi correndo todos os dias. São lições práticas, físicas. Até onde posso me forçar? Quanto descanso é apropriado — e quanto é demais? Até onde posso levar alguma coisa e ainda assim mantê-la decente e consistente? Quando uma coisa se torna tacanha e inflexível? Quanta consciência do mundo exterior devo ter, e quanto devo me concentrar em meu próprio mundo interior? Em que medida devo ter confiança em minhas capacidades, e quando devo começar a duvidar de mim mesmo?
(Haruki Murakami, em “Do que eu falo quando falo de corrida)
Virginia Woolf tem uma declaração famosa que diz que “todos os romances começam com uma senhora que está na esquina em frente”. E que maneira melhor de encontrar esses “temas de escrita” do que habitando as ruas? Captar detalhes e fragmentos de vida são grande fonte de inspiração. A magia está no dia a dia. Andar nas ruas é um grande exercício criativo.
Comecei esse texto falando da corrida como minha forma de estar fora de casa e praticar um exercício que contribui para manter a mente saudável. Como disse, sempre gostei de resolver as coisas andando. Tem um quê de liberdade me locomover sem veículos, sentindo a brisa e observando o movimento. Essa coisa de vaguear pelas ruas sempre foi muito atribuída ao homem, o famoso flâneur, mas a autora Lauren Elkin reivindica esse espaço das ruas também como direito das mulheres ao cunhar o termo feminino flâneuse.
Como mulher, não sinto a mesma segurança que um homem de andar pelas ruas. São muitas as preocupações que temos ao colocar os pés para fora de casa, mesmo que seja para ir só ali na esquina comprar um pão. São muitos riscos que eu gostaria que não existissem. Mas precisamos, sim, ocupar esses espaços, seja do direito de andar em paz, seja escrevendo as histórias que queremos contar.
No livro “Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres”, Lauren Elkin entrelaça sua experiência como andarilha em várias cidades com histórias de artistas que também passaram pelas mesmas ruas em épocas distintas, rememorando o itinerário e o pensamento dessas mulheres. É uma leitura interessante para refletir como a ocupação das cidades aparece nas obras dessas artistas.
Por que ando? Porque gosto. Gosto do ritmo, minha sombra sempre um pouco à minha frente na calçada. Gosto de poder parar quando quero, de me encostar na parede de algum edifício e anotar alguma coisa no diário, ler um e-mail ou enviar uma mensagem de texto, e que o mundo pare enquanto faço isso. Andar, paradoxalmente, traz a possibilidade de quietude.
(Lauren Elkin, em “Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres)
Há muita vida pulsando nas cidades. Usando de inspiração um verso de Caetano Veloso, digo que: escrevo somente porque não posso mais me calar. Corro para me fortalecer. Caminho mais um passo, mais uma palavra adiante, às vezes dou ré, mas sempre me mantenho em movimento.
Referências e inspirações
Muitos metros de palavras me ajudaram a criar esse texto. Recomendo cada um deles!
Livros:
– Do que eu falo quando falo de corrida (Haruki Murakami, tradução de Cássio de Arantes Leite)
– Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres (Lauren Elkin, tradução de Denise Bottmann)
Outros textos:
– Catorze dias de caminhada no Jardim Botânico -
na newsletter doses de tiquira– Andanças, newsletter de
“sobre filmes com pessoas fictícias andando pela cidade e refletindo sobre a vida.”– A vida e a corrida, newsletter de
para entusiastas da corrida de rua.A newsletter Devaneios Criativos foi criada e escrita por mim, Carol Vidal, e agora conta com a colaboração de Rita Zerbinatti, professora de arte e apaixonada por livros como eu, na curadoria de imagens. Segue o texto que ela preparou sobre a obra escolhida para esta edição:
“Em ‘Passagens’ é como se eu produzisse uma escritura com meu próprio corpo, é como se caminhasse nas páginas de um caderno de anotações”.
Aqui no Brasil, Anna Bella Geiger foi uma precursora da videoarte nos anos 70, e quando conheci sua obra “Passagens”, algo em mim se despertou. A artista buscava novas maneiras de se expressar, enquanto eu também buscava algo que até hoje não sei bem. Mas, de certa forma, acabei encontrando um pouco daquilo que procurava a partir da sua obra, pois seu vídeo me acolheu e me compreendeu da maneira exata que necessitava naquele momento. Nesse vídeo, a artista caminha e sobe escadas infinitas. É um loop.
O movimento não tem fim, as escadas não têm fim e esse caminhar não leva a lugar nenhum. Estamos congelados por quase 10 minutos, observamos esse caminhar e vamos percebendo que é possível chegar em muitos lugares. Essa obra pode dialogar com a nossa capacidade de caminhar sem perceber as coisas ao nosso redor, essa obra pode dialogar com a escrita e o processo criativo, essa obra pode dialogar com a vida em si: o que é a vida senão um eterno caminhar? Uma eternidade de degraus para subir e subir.
Assista ao vídeo clicando aqui.
Tenho feito mais exercícios físicos ultimamente (e com mais regularidade) e sinto que tudo toma outra dimensão. Esse cuidado com o corpo e com a saúde faz toda diferença no trabalho criativo e parece que a cabeça consegue funcionar melhor. O estereótipo do escritor boêmio e sofrido não tá com nada não haha. A rua é sempre uma fonte maravilhosa de inspiração, né? Adorei o texto (e a obra Passagens) <3
Obrigada por mencionar a Andanças, Carol! <3
Eu ainda estou procurando um exercício físico que eu goste, e tempo para praticá-lo. Por enquanto eu tenho um ódio mortal por corrida, por mais que goste de caminhar kkkk Mas eu tento fazer outras coisas que me permitam sair da minha cabeça e observar o mundo ao meu redor.